William

Um tiro no peito

Joice Firmino da Silva, 40, estava de plantão no hospital onde trabalhava como copeira quando sentiu uma dor no peito na madrugada do dia 12 de janeiro de 2020. “Era como se um ferro estivesse entrando…”. Passados quase dois anos, ela ainda se angustia lembrando do telefonema que recebeu da vizinha uma hora depois, por volta das 3h40 da madrugada do domingo, informando que seu filho William da Silva Melo, de 19 anos, havia sido baleado. Às 0h40 ele tinha mandado uma última mensagem pra Joice: “Mainha, se eu me der bem lá em São Paulo, a senhora deixa eu ficar lá?”.

William estava feliz naqueles dias, havia recém terminado um curso técnico de Mecânica e começaria a trabalhar dali a uma semana. Naquela noite, decidiu ir com os amigos ao “paredão de som” na UR-1, no Ibura, onde seria gravado um clipe do MC Fleshinho. A festa juntou muita gente nas ruas próximas ao Clube Nacional e ao Bar Gela Guela. Tudo transcorria bem até a chegada da Polícia Militar, por volta de 1h30, acompanhada dos Bombeiros, técnicos da Dircon e da CTTU, numa operação para recolher as barracas, notificar e fechar os bares da região.

Os bares e barracas foram fechados. Não houve tumulto. Parte do público deixou o local, mas muita gente ainda ficou na região dançando, bebendo e conversando. Depois de algum tempo, os policiais militares passaram a fazer abordagens e revistas nas pessoas que circulavam pelas calçadas e ruas, e os ânimos se acirraram. Um taxista que fazia ponto no local contou que, por volta das 2h30 da madrugada, os policiais passaram a dispersar a multidão “jogando bomba de gás lacrimogêneo e disparando bala de borracha para todos os lados”. Segundo ele, as pessoas começaram a correr tentando se proteger e algumas reagiram arremessando pedras nos policiais.

O taxista também correu, mas foi atingido por uma das balas de borracha. O policial que atirou estava do outro lado da rua e gritava: “Bora pra casa, quero ninguém aqui não. Pra casa!”. Um rapaz caiu ao ser atingido no joelho por outra bala de borracha. As declarações do taxista constam do inquérito policial aberto na 3ª Delegacia de Homicídios para investigar a morte de William.

“Era como se um ferro estivesse entrando...”

Reação de Joice ao saber
que seu filho foi baleado

O jovem de 19 anos e dois amigos já estavam de saída da festa quando começou o tumulto. A cerca de 300 metros do lugar onde a polícia confrontava o público, na altura da pracinha da Academia da Cidade, eles viram um outro grupo de policiais espancando um jovem caído no chão. Juntaram-se a outras pessoas que pediam para que os agentes de segurança parassem com as agressões. Nesse momento, segundo os relatos dos dois colegas de William, um dos PMs sacou uma pistola que carregava no coldre da frente da farda, apontou a arma para o grupo e disparou. A bala atingiu o peito de William, que tombou.

Ainda segundo os depoimentos de testemunhas oculares do crime, ao perceberem que William foi atingido, os policiais largaram o rapaz agredido e deixaram o local sem prestar qualquer socorro à vítima. William ainda estava vivo. Disse que tinha sido atingido por um tiro. Um dos seus colegas rasgou a sua camisa e confirmou a perfuração na altura do peito direito. Os amigos carregaram William até a rua principal, dizem que foram abordados por uma viatura da Rádio Patrulha que também não prestou socorro. William acabou sendo levado à Policlínica Arnaldo Marques na caçamba de uma S10 de um motorista que parou para ajudá-los. Chegou à unidade de Saúde já sem vida.

Joice chegou à policlínica por volta das 4h30. Ainda não sabia da morte do filho. Os conhecidos presentes no local não tinham coragem de contar a verdade. Passou mal. A pressão pipocou: 22/19. Foi medicada. Em seguida, um dos médicos informou que o filho dela já havia chegado ao local sem vida. Ela não podia acreditar no que estava ouvindo. O filho mais velho sem vida 12 dias após a morte por doença da avó. Ainda vivia o luto pela perda da mãe quando teve que juntar forças para enfrentar o assassinato do filho.

Crime repercutiu na mídia

A morte de William repercutiu nos jornais e portais de Pernambuco na manhã da segunda-feira, 13 de janeiro. Os títulos das matérias falavam de um jovem morto em baile funk no Ibura “durante operação da Polícia Militar” ou “durante confusão da Polícia Militar de Pernambuco e o público presente em um baile brega-funk”. Amigos e parentes de William deram declarações sobre o temperamento pacífico e carinhoso do jovem. Julio Herminio de Moura Neto, que convivia há quatro anos com William, deu entrevista naquele dia aos jornais pedindo justiça. No inquérito, testemunhas disseram que William era “uma pessoa tranquila, que nunca se metia em confusão”.

O enterro aconteceu em Igarassu com a cobertura da imprensa. Sob forte comoção, parentes, amigos e vizinhos vestiam camisas brancas com a foto de William. “A gente passou o dia todo na piscina curtindo e se divertindo. Dei tchau a ele e me disse que iria para casa, quando foi depois chegou a notícia que ele estava na UR-1 e que estava rolando uma festa e a polícia já chegou atirando sem querer saber de ninguém, com bala de borracha, bomba de gás, com tudo. Quem chegou com tumulto lá realmente foi a polícia”, relatou na época um colega de William.

O que mais chocou Joice foi a omissão de socorro. “Eu quero justiça porque meu filho levou um tiro e os policiais não socorreram e nem deixaram os amigos que estavam ao redor socorrer ele”, relatou aos jornalistas.

Ante a repercussão, a Polícia Militar de Pernambuco soltou uma nota oficial um dia após o “paredão de som” associando a morte de William a uma briga entre grupos rivais locais. A nota afirmava que os policiais integrantes do 19o BPM que participavam da Operação Bar Seguro no Ibura receberam a informação “de que estava havendo uma briga, possivelmente, entre grupos rivais no local”. Ao se deslocarem, dizia a nota, “os policiais encontraram a vítima já baleada dentro de um carro particular que já lhe prestava socorro”.

A nota considerava “irresponsável qualquer suposição ou acusação de autoria do disparo ou omissão de socorro, e inverídica qualquer semelhança com a situação apontada num fato no estado de São Paulo”, numa referência à morte de nove pessoas pisoteadas durante ação da Polícia Militar daquele estado em baile funk na comunidade de Paraisópolis, no dia 1 de dezembro de 2019, quando os policiais tentaram dispersar o público com bombas de gás e balas de borracha. Nove PMs seriam denunciados pelo Ministério Público de São Paulo à Justiça por homicídio neste caso.

A versão de “briga de facção” revoltou a família de William. “Não houve troca de tiros, não houve briga de facções, nada disso. A gente precisa saber o que aconteceu, foi um único tiro que matou William, que tirou William da mãe dele, da família dele, do pai dele. Quantos jovens mais precisam morrer?”, questionou a tia da vítima, Patrícia Santos, após a manifestação pública da Polícia Militar.

Três dias depois do crime, na quarta-feira, dia 15, familiares e amigos de William bloquearam o cruzamento das avenidas Dois Rios com a Rio Xingu nos dois sentidos, em protesto contra o crime e pedindo justiça.

Na época, a Secretaria de Defesa Social informou que seria aberta uma investigação interna preliminar sobre o crime. E, “em caso de elementos suficientes, a Corregedoria poderia instaurar um Procedimento Administrativo Disciplinar ou uma sindicância”.

A reportagem solicitou à SDS informações sobre o andamento das investigações. A Corregedoria Geral da SDS informou “que foi instaurado Processo Administrativo Disciplinar (PAD) em desfavor do soldado PM. Atualmente, está em tramitação o Conselho de Disciplina contra o militar. O Conselho de Disciplina julga se o policial militar é considerado incapaz de permanecer na ativa devido a conduta irregular ou por proceder incorretamente no desempenho do cargo, garantindo direito à ampla defesa e ao contraditório”.

Falso testemunho

Catorze policiais militares participaram da operação Bar Seguro na madrugada do domingo, 12, no Ibura, segundo lista solicitada ao 19º Batalhão da Polícia Militar de Pernambuco pelo delegado da 3ª Delegacia de Homicídios, responsável pelo inquérito que apurava a morte de William. Eles foram ouvidos durante quatro dias entre o final de janeiro e início de fevereiro. Todos negaram que em algum momento tenham feito algum disparo de arma letal. Nenhum deles confirmou as agressões a um rapaz nas proximidades da Academia da Cidade. A maioria disse ter ficado sabendo indiretamente que alguém havia sido baleado e socorrido. Alguns deles depois foram deslocados à policlínica para confirmar o fato e tomaram conhecimento da morte de William.

As investigações da Polícia Civil, no entanto, desmontaram a versão da PM. Com base em depoimento de testemunhas oculares, conseguiram reconstituir os fatos a partir da apreensão de uma moto feita pela CTTU naquela madrugada na mesma região. Chegaram ao condutor e ao carona que o acompanhava. Os dois contaram que transitavam de moto quando foram abordados e derrubados pelos policiais na altura da Academia da Cidade, na UR-1. O motorista conseguiu escapar, mas o carona ainda no chão recebeu socos e pontapés. A cena narrada pelos amigos que estavam com William – e negada pelos policiais – estava comprovada.

“Não houve troca de tiros, não houve briga de facções, nada disso. A gente precisa saber o que aconteceu, foi um único tiro que matou William, que tirou William da mãe dele, da família dele, do pai dele. Quantos jovens mais precisam morrer?”

– Patrícia Santos, tia da vítima

Perícia comprova

autoria de policial

 

Quinze armas de fogo em poder dos policiais militares foram submetidas à perícia balística para identificar se saiu de alguma delas a bala recuperada no corpo de William. O laudo, assinado pelo perito criminal Moisés da Silva Constantino, do Instituto de Criminalistica Prof. Armando Samico, apontou a pistola da marca Taurus, calibre 40, com cano de 12,3 cm, número de série SBY 37051, pertencente à Polícia Militar de Pernambuco, como aquela que disparou o tiro fatal contra o peito de William da Silva Melo na madrugada do dia 12 de janeiro de 2020.

O soldado PM que portava a arma durante a operação foi indiciado no inquérito policial por homicídio doloso, quando corre o risco de matar.

“Indiciamento do soldado por prática de ação homicida contra William, ação que teria sido prática com dolo eventual, uma vez que nem o autor nem a vítima sequer se conheciam, não havia nenhum envolvimento prévio entre ambos, algo que justificasse o animus necandi do autor em relação ao vitimado, todavia, quando o autor efetuou o disparo contra a multidão, vindo a acertar a vítima, ele sabia do risco que corria de acertar e matar alguém, e acabou aceitando o risco de modo que figura, salvo entendimento em contrário, o dolo eventual, e por conseguinte, o autor foi indiciado nos termos do artigo 121 do Código Penal”, diz o relatório final assinado no dia 9 de março de 2020 pelo delegado Francisco Océlio Lima Ribeiro.

O delegado deu crédito aos depoimentos dos amigos que socorreram William. “Os policiais não têm uma versão verossímil, pois quando da oitiva deles, nenhum policial narrou que um deles efetuou um disparo contra a multidão nem mesmo o autor, apesar de isso ter ocorrido, já que a perícia de confronto microbalístico concluiu que o projétil que foi extraído do corpo da vítima foi expelido pelo cano da arma de um desses policiais”.

As investigações descartaram a relação entre a morte de William e o tumulto gerado pela própria atuação da Polícia Militar ao dar o comando de dispersão da multidão. “Por óbvio que o disparo não teve qualquer relação com o tumulto gerado quando da intervenção dos militares… já que os dois eventos ocorreram em tempos e locais diversos”.

No dia 30 de maio de 2020, o Ministério Público ofereceu denúncia para instauração de ação penal contra o soldado PM que matou William por homicídio qualificado por motivo torpe, descartando qualquer justificativa de legítima defesa ou excludente de ilicitude: “nos momentos que antecederam o crime nenhum dos populares interveio no espancamento do motorista que era alvo da abordagem policial, haja vista que, apesar de seus protestos, os populares mantinham considerável distância do efetivo, limitando-se apenas a protestar verbalmente”. Concluindo que “ante os protestos verbais daqueles que assistiam a cena, o denunciado, movido pela ira e em clara demonstração de força, sacou a arma letal que trazia consigo e fez disparo em direção à multidão, em relação à qual tinha a missão precípua de proteger”.

A Justiça recebeu a denúncia e a ação foi instaurada na 12a Vara Criminal da Capital. A intimação para que o réu se pronuncie foi despachada apenas em 6 de janeiro de 2021. Passados quase 1 ano desse despacho, a ação segue o trâmite lento dos tribunais.

Joice não passa um dia sem lembrar do filho mais velho morto pela polícia. “Eu gosto muito de viajar, a gente ia pra o Ceará, Natal, João Pessoa. Ele era meu parceiro em tudo. Ia comigo pra todo canto. Às vezes filho não gosta de sair com a mãe, mas ele gostava. Me acompanhava pra todo canto. Perdi um amigo e parceiro. Todas as festas que eu tava, ele tava. Se fosse uma missa, ele também ia. Eu perdi um companheiro, um amigo de todas as horas. Tava sempre comigo”.

A morte de William também mexeu com o irmão dele, dois anos mais novo. A psicóloga que o atendeu após o crime pediu que Joice retirasse da sala da sua casa o banner que havia ganho com a foto de William porque a imagem estava o afetando. “Ele sofreu muito com a perda do irmão. Eram muito próximos”, conta Joice. O irmão mais novo de William passou a ficar mais em casa. Deixou de ir para muitos lugares que frequentava antes. “Eu só tenho ele. Hoje fico muito mais preocupada”, diz a mãe.