Marcos Laurindo

A dor da espera
por Justiça

São 3.114 dias que separam a publicação desta reportagem especial e o momento da execução do filho de Lúcia e Francisco. O trauma daquele 17 de maio de 2013 ainda está latente na memória do casal que testemunhou o jovem de 21 anos ser morto por um policial militar dentro da casa onde moravam, na comunidade de Bola na Rede, no bairro da Guabiraba, Zona Norte do Recife. O soldado que atirou em Marcos Laurindo nas costas e no peito foi indiciado e denunciado à Justiça por homicídio doloso, quando há intenção de matar. O processo ainda está em curso, oito anos, seis meses e nove dias após a morte do filho de Lúcia e Francisco.

O relógio marcava 23h quando o barulho da frenagem de pneus na Avenida Padre Mosca de Carvalho chamou a atenção da mãe e do pai de Marcos Laurindo. Mal conseguiram entender do que se tratava quando viram o filho entrar correndo, assustado. Logo atrás um PM com arma em punho. Lúcia rogou para que o soldado não disparasse, abraçando-o pelas costas. Foi empurrada contra o armário. Viu e ouviu quando dois dos três tiros acertaram o filho.

“Não mate o meu filho, não”

Disse Lúcia ao ver o policial
perseguindo seu filho
“A viatura fez aquela zoada. Ele correu e empurrou o portão com a mão. Aí o policial chutou e já foi entrando. Eu pulei a janela. O menino na frente, o policial correndo atrás e eu gritando ‘não mate o meu filho, não’. Quando eu cheguei, ele estava para atirar no menino: ‘bora, bora, passa a arma’. Eu me segurei nele. Com a pistola na mão, ele me jogou. E atirou. O menino saiu cambaleando. Foi quando ele deu mais dois tiros”, relembra a mãe.

O jovem tombou sobre a cama de casal de colchão de forro vermelho, agora também manchado de sangue. Morreu ali mesmo segundos depois de ser alvejado, conforme atestou o laudo pericial do Instituto de Criminalística. Em seguida, o corpo foi arrastado até a viatura pelo soldado que atirou e o PM com quem fazia dupla no policiamento. Colocado na parte traseira do veículo, foi levado ao Hospital Agamenon Magalhães, 12 quilômetros distantes do local do fato.

O pai da vítima conseguiu entrar no banco de trás da viatura, à revelia dos policiais. “Eu fui discutindo. Ele mandando eu calar a boca, que eu fosse procurar meus direitos. Eu tinha medo que eles jogassem meu filho pela BR ou forjassem uma arma, como forjaram. Mas o exame (residuográfico) deu negativo”, conta Francisco da Silva. Na última semana de vida, Marcos Laurindo trabalhou como servente de pedreiro, na companhia do pai, e ganhou R$ 180 pela empreitada.

A unidade de saúde registrou que a vítima já chegou sem vida e, em seguida, encaminhou o corpo ao Instituto de Medicina Legal (IML), na área central do Recife. A causa da morte foi “choque decorrente de ferimentos penetrantes produzidos por instrumento perfuro contundente”, como informa a certidão de óbito de Marcos Laurindo. A arma de onde saíram os disparos que mataram o jovem estava registrada como propriedade da Polícia Militar de Pernambuco: uma pistola da marca Taurus, calibre .40, número de série SUK 14825.

A vítima não possuía antecedentes criminais, diferentemente do policial que atirou. À época do fato, o soldado da Polícia Militar de Pernambuco respondia na Justiça a processo por homicídio. Poderia estar afastado das atividades de policiamento ostensivo até o julgamento das acusações. A reportagem solicitou à Secretaria de Defesa Social informações sobre o andamento das investigações da morte de Marcos Laurindo na instância interna do órgão. Enviou também questionamentos sobre o fato de um policial réu por homicídio atuar no policiamento ostensivo. A pasta informou que o soldado que atirou em Marcos Laurindo encontra-se excluído da corporação, mas nada disse sobre o fato de ele ter permanecido no policiamento já sendo réu por homicídio. O colega que fazia dupla com o policial que atirou cumpriu prisão de 30 dias e foi trocado de batalhão.

Investigação desmente

versão de PMs

Na delegacia, os PMs envolvidos apresentaram como sendo de Marcos Laurindo um revólver calibre 38 sem registro no Sistema Nacional de Armas, responsável pelo controle de armamento em poder da população e pelas condições para o registro e porte. À Polícia Civil, a dupla relatou que seguia na viatura em baixa velocidade, com as luzes intermitentes apagadas, para não chamar atenção, quando sofreu uma tentativa de assalto. Um homem teria atirado contra os policiais. Em seguida, teria sido perseguido a pé e baleado pelo soldado que dirigia a viatura momentos antes. Capturado dentro de casa, Marcos Laurindo teria sido levado ainda com vida ao hospital.

A investigação policial, no entanto, considerou falso o relato oficial dos policiais. Além da produção de provas periciais, o inquérito colheu o depoimento de nove testemunhas, incluindo mãe e pai da vítima. Após receber e analisar o trabalho da Polícia Civil, o Ministério Público de Pernambuco decidiu formalizar denúncia.

“A versão (dos PMs) está efetivamente descartada pelas inúmeras provas produzidas. A Recognição Visuográfica do Local de Crime, produzida pelo DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa) na mesma noite em que o crime aconteceu, conclui que ‘a versão apresentada pelos policiais militares não encontra nenhum embasamento nas informações colhidas preliminarmente no local do fato’”, destaca um trecho do documento.

A 28ª Promotoria de Justiça Criminal da Capital destacou, ainda, que “foi realizada também Reprodução Simulada da ação criminosa, chegando-se à conclusão de que a 4ª encenação, que representa a versão apresentada pelo denunciado, torna-se insustentável, pois não há relação entre a linha de tiro descrita pelo atirador e a região da lesão sofrida pela vítima.”

O MPPE também pediu a prisão preventiva do soldado que atirou em Marcos Laurindo, “possuidor de histórico de agressividade e por estar respondendo a semelhante processo, também acusado de homicídio, como se vê em sua folha de antecedentes criminais”. Mas a Justiça negou e o réu responde em liberdade. No processo judicial da morte de Marcos Laurindo, há ainda um abaixo-assinado de moradores de Bola na Rede, com três páginas de caderno de assinaturas, que denuncia a violência com que atuavam os policiais indiciados na comunidade de Bola na Rede.

Além do policial indiciado por homicídio doloso, o policial com quem que fazia dupla no expediente foi indiciado por ter prestado falso testemunho à Polícia Civil para encobrir a ação do parceiro.

Homicídio provado,

motivo desconhecido

 

A Polícia Civil apresentou provas para embasar os indiciamentos, mas não conseguiu reunir elementos suficientes para apontar qual motivação levou o réu a agir daquela maneira. Uma das hipóteses é um desentendimento entre o PM e a vítima, dois meses antes do fato.

O soldado tinha sido acionado pelo 190 para atender uma ocorrência vinda da casa da família de Marcos Laurindo. O jovem tinha distúrbios psicológicos. Naquele dia, estava agitado dentro de casa. Ele chegou a ser algemado e colocado dentro da viatura. “Que o PM disse que ia levá-lo para dormir uma noite no xadrez, que a depoente pediu que não, que o policial disse que, da próxima vez, viria e mataria, pois ela era uma velha safada e alcoviteira”, contou a mãe em depoimento à época. À espera de justiça, ela é a principal testemunha do crime que vitimou o filho.

O caso de Marcos Laurindo ainda está distante de ser concluído. O processo está em trâmite na Segunda Vara do Tribunal do Júri da Capital, demorou anos para chegar à decisão de pronúncia, proferida pelo juiz em 2020 e que autoriza o prosseguimento da ação para o Júri Popular. Os réus entraram com recurso contra a decisão de pronúncia e, até o momento, esse recurso não se tornou processo na segunda instância em razão da lentidão do andamento na Vara. Somente após essa etapa o caso pode seguir para o Júri e, enfim, ter um veredito.