Uma família inteira destroçada
Aquela segunda-feira (9) havia sido de trabalho e expectativa para a família de Marcone e Dayvison. O pai de Marcone, a quem pertencia o viveiro de camarão, já havia negociado a venda do que produziu na temporada. A despesca seria no dia seguinte. O gelo estava comprado e acondicionado dentro de isopores. Tudo pronto para receber e conservar o camarão que seria retirado da água doce. O comprador já estava no aguardo para transportar a mercadoria fresca.
A função de Marcone e Dayvison naquela madrugada seria “vigiar” o viveiro. Ficar atentos, caso o nível da água baixasse demais em algum dos reservatórios, o que pode ocasionar a morte de crustáceos. Naquela madrugada, o BOPE iria deflagrar uma operação, em conjunto com a Polícia Civil, cujo objetivo era interceptar o repasse de uma carga de maconha.
“E é o que eu digo: enquanto eu tiver vida, eu vou pedir justiça pelo meu filho. Porque eu bato no peito e digo, meu filho é inocente”
A versão dos policiais envolvidos na ação apresentada na delegacia já depois da morte de tio e sobrinho afirmou que o efetivo de agentes teria sido recebido a tiros na região por um grupo de cinco pessoas, precisou revidar e atingiu Marcone e Dayvison, enquanto outros três indivíduos conseguiram escapar. Na delegacia, eles apresentaram uma pequena quantidade de droga, dois revólveres calibre 38 e uma espingarda 12. Os agentes contaram que os revólveres foram encontrados próximos aos corpos de tio e sobrinho.
O relato oficial dos PMs não convenceu os profissionais que trabalharam no inquérito que apurou as circunstâncias das duas mortes. Os policiais disseram que a operação para combater o tráfico foi montada a partir da informação repassada por um homem que havia sido detido e, posteriormente, informado que naquele dia e local haveria um transação de drogas. Só que esta informação não consta no depoimento do suspeito detido.
Na investigação, a Polícia Civil produziu e reuniu elementos que considerou suficientes para indiciar cinco policiais do BOPE pelo duplo homicídio que vitimou tio e sobrinho. O exame residuográfico do Instituto de Criminalística (IC) não encontrou qualquer resíduo de chumbo ou pólvora nas mãos das vítimas.
A perícia diverge do relato dos policiais do BOPE, pois identificou sinais de violência no corpo de Marcone em um resultado detalhado. “Presença de hematomas e equimoses pelo corpo: em face, em lábios superior direito e inferior direito, assim como na mucosa interna dessa região, equimose periorbitária bilateral, edema facial e bipalpebral, face anterior do abdome, tórax, dorso, membros inferiores. Edema e assimetria da face à direita em região malar, sugerindo lesões externas de violência”
Na conclusão, o laudo do Instituto de Medicina Legal afirmou: “face ao exposto, concluo que a morte foi causada por hemorragia interna do abdome por ferimento penetrante produzido por projéteis de arma de fogo. Outros diagnósticos: traumatismo craniano e encefálico e facial por instrumento contundente.”
Um vídeo feito por celular por moradores do bairro na localidade onde tio e sobrinho foram mortos no dia seguinte à ação mostra manchas de sangue no chão lamacento, marcas de pisadas de calçado, peças de roupas que as vítimas vestiam naquela noite espalhadas e um pedaço de osso que parece ser da região craniana. O material, a que a reportagem teve acesso, foi repassado à Polícia Civil.
As mortes completaram um ano sem que o Ministério Público de Pernambuco tenha oferecido denúncia pelo duplo homicídio. No momento, novas diligências ainda estão sendo solicitadas para a investigação. E os policiais militares seguem na ativa. Caso o MPPE decida denunciar os agentes de segurança, eles se tornam oficialmente réus, devendo ir a júri popular.
A reportagem solicitou à Secretaria de Defesa Social (SDS) informações sobre o andamento das investigações das mortes de tio e sobrinho na Corregedoria da pasta. Como resposta, recebeu a informação de que nenhum procedimento foi aberto na instância interna do órgão “uma vez que havia um inquérito policial militar em instrução no âmbito da PM”.
Mobilização para
assegurar Justiça
Mesmo impactada, a família de Marcone e Dayvison está mobilizada para seguir na cobrança pela responsabilização dos que participaram da operação policial que resultou na morte das vítimas. Recentemente, familiares e amigos realizaram uma caminhada até a sede do MPPE em Itamaracá. O ponto de partida foi a comunidade do Chié, onde aconteceu o duplo homicídio. Com camisa branca com estampa com rosto das vítimas e faixas pedindo justiça, o cortejo seguiu pelo centro da cidade. O ato despertou a atenção e revolta das pessoas.
“Esse foi aquele caso do tio e sobrinho, né? Uma covardia o que fizeram com eles. Nesse Brasil, meu filho, a Justiça não foi feita para o pobre”, diz uma senhora, dirigindo-se ao repórter. Duas esquinas à frente, dois rapazes sentados no batente de uma farmácia conversam. “Tu acha que vai dar alguma coisa para eles (policiais)? Duvido muito”, pergunta um deles. O caso completou um ano em novembro.
No que depender de Verônica, mãe de Dayvison, a cobrança por justiça só vai cessar quando a justiça for feita. “E é o que eu digo: enquanto eu tiver vida, eu vou pedir justiça pelo meu filho. Porque eu bato no peito e digo, meu filho é inocente”, afirma ela.
No inquérito, foram ouvidos também os homens que venderam o gelo ao avô de Dayvison e o que iria comprar o camarão. “É a prova que eles estavam ali trabalhando. Vigiando o viveiro para a despesca”, aponta Verônica.
Política de drogas
legitima violência letal
Para a advogada Maria Clara D’Ávila, a atuação do BOPE naquela ocasião pode ser considerada desastrosa: não desbaratou nenhuma organização criminosa, não interceptou cargas de drogas e ainda culminou na morte de dois inocentes.
“O que a gente tem hoje estruturado no Brasil é uma política de drogas que, historicamente, é o que determina o funcionamento tanto do sistema de justiça criminal quanto das forças de segurança pública. É isso que a política de drogas faz: ela legitima a morte de determinadas pessoas, sejam elas envolvidas ou não com drogas, porque elas moravam e trabalhavam em locais criminalizados”, analisa.