Morte pelas costas, sem chance de defesa
A cada novo protesto, uma esperança seguida de frustração. Foi assim em agosto de 2021 quando familiares do jovem Jhones Lucindo Ferreira, de 17 anos, morto por um policial militar um ano antes, fizeram uma manifestação pedindo justiça em frente ao Fórum Desembargador Rodolfo Aureliano, no Recife. Em algumas horas, veio a informação de que a primeira audiência do caso teria sido marcada. Mas, na sequência, foi adiada para o ano seguinte. Naquele mesmo mês, houve ato também em frente ao Fórum de Jaboatão dos Guararapes, município onde aconteceu o crime.
Em 2020, familiares, amigos e vizinhos de Jhones já tinham ocupado a frente da Corregedoria da Secretaria de Defesa Social e do Palácio do Campo das Princesas para pressionar pela conclusão do inquérito na Polícia Civil e pedir pela abertura de investigação interna no órgão que disciplina e controla a atuação dos policiais no Estado. À reportagem, a SDS informou que foi instaurado Conselho de Disciplina “em desfavor” do policial que atirou contra Jhones e que o procedimento ainda segue em tramitação.
No ato em Jaboatão, a mãe de Jhones, Maria Solange Ferreira desabafou para a imprensa: “Faz um ano da morte dele e até agora nada foi resolvido, quero justiça para que esse caso não fique impune. O policial envolvido está aposentado em casa porque ele já tinha dado entrado na aposentadoria um dia antes da abordagem contra meu filho”.
“Eu tenho muito medo de que não tenha justiça, porque infelizmente a Justiça é falha e quando se trata de um policial é que fica tudo mais difícil e complicado."
Jhones Lucindo Fereira foi morto no início da tarde do dia 5 de agosto de 2020 na Rua Sete de Setembro, na comunidade de Rio das Velhas, em Prazeres, Jaboatão. Ele trabalhava como soldador numa oficina mecânica e estava indo de carona na moto de um amigo buscar uma ferramenta na casa da avó para consertar a máquina de lavar de uma tia. Morreu com um tiro na nuca, sem qualquer chance de defesa, durante uma abordagem de policiais militares do 6o Batalhão da PM. O crime foi presenciado por comerciantes e pessoas que circulavam pelo local. A versão do policial que disparou, acusando Jhones de estar portando um simulacro de arma de fogo e ter colocado a vida dos agentes de segurança em risco, foi derrubada pelas investigações conduzidas pela 11ª Delegacia de Homicídios.
Os policiais contaram que receberam um informe pelo rádio da viatura que dois homens haviam tomado de assalto uma moto vermelha no bairro de Marcos Freire e seguiam no sentido BR-101/Prazeres. Meia hora depois, viram Jhones e o amigo numa moto na Rua Sete de Setembro, trancaram o veículo com a viatura policial e já desceram de arma em punho pedindo que os jovens parassem a moto. O colega de Jhones desembarcou e colocou as mãos na cabeça, virando-se para a parede da calçada. Jhones, após desembarcar, se assustou, virou de costas e tentou correr, mas foi atingido por trás e caiu. A partir daí, as versões dos policiais militares não se sustentam, segundo conclusão do inquérito da Polícia Civil.
O motorista da viatura, que apontou a arma para o piloto da moto, disse num primeiro depoimento que Jhones desceu com uma arma de fogo nas mãos. Na reinquirição, afirmou que a vítima desembarcou puxando um objeto da sua cintura e correu. Ele virou-se para o piloto da moto com receio que este também tentasse sair do local, quando ouviu o tiro e, na sequência, viu o corpo de Jhones no chão. O sargento da PM que matou o jovem de 17 anos alegou que Jhones desceu da moto já puxando um objeto da cintura e colocando as mãos para trás. Que Jhones ia se esconder atrás de um carro e ele disparou por acreditar que o jovem efetuaria disparos de arma de fogo contra o policiamento.
O sargento afirmou que depois do disparo se dirigiu até Jhones para recolher a arma e viu que se tratava de um simulacro de arma de fogo. Disse que encontrou ainda um celular na genitália da vítima e outro no bolso da bermuda, mas não soube dizer marca e modelo. Duas outras viaturas do GATI chegaram em seguida ao local para dar apoio. Os policiais que abordaram os jovens colocaram Jhones na mala de um dos carros e o conduziram para a UPA de Sotave. De lá, ele foi transferido para ao Hospital da Restauração onde faleceu.
Testemunhas negam
versão dos policiais
Nenhuma testemunha ocular da abordagem confirmou a versão do sargento de que Jhones portava ou tinha ao lado ou na proximidade do seu corpo no chão qualquer simulacro de arma de fogo ou mesmo dois celulares. Testemunhas falaram de um único celular apreendido pelo policial. Uma delas informou que os policiais do GATI perguntaram pela arma e procuraram embaixo dos carros e não encontraram nada. O jovem que pilotava a moto foi algemado e levado para o 6o Batalhão da Polícia Militar. Disse em seu depoimento à Polícia Civil que Jhones tinha apenas um celular naquele dia e não viu com ele nenhum simulacro de arma de fogo. Negou que ele e Jhones tivessem praticado roubos e informou que a moto que dirigia pertencia à sua mãe.
No dia 1 de outubro, o delegado da 11ª Delegacia de Homicídios apresentou seu relatório final com o indiciamento do sargento PM que matou Jhones. “Ao contrário do que os policiais relataram, Jhones não estava portando nenhum objeto similar a uma arma de fogo, muito menos foi visto por alguma testemunha ocular, excetuando o parceiro do sargento, algum objeto parecido com uma arma de fogo caído do chão perto do corpo de Jhones ou qualquer outro objeto que pudesse representar perigo à equipe policial”.
O delegado chamou atenção para o fato de o policial que acompanhava o sargento que matou Jhones afirmar, em seu segundo depoimento, não ter visto os objetos apreendidos no momento da abordagem, o que só aconteceu ao chegar no 6o Batalhão da PM. “Ou seja, um dos policiais que fez a abordagem não consegue precisar a veracidade dos objetos colhidos e nem se no momento a vítima estaria portando arma de fogo ou simulacro”, explica o investigador.
“Não se mostra claro que o agente de segurança estava em situação de legitima defesa, artigo 25 do CP, pois pelo vasto relato das testemunhas oculares presentes aos autos, nenhuma delas presenciou a vítima portando algum objeto que pudesse caracterizar uma injusta agressão contra a equipe policial. O simples fato de o rapaz se evadir do local da abordagem sem esboçar nenhuma reação violenta contra o policial, não permite que o agente de segurança efetue disparo com o fim de atingi-lo por não se trata de uma hipótese de injusta agressão. Assim, não se configura nenhuma hipótese de excludente de ilicitude aos fatos extraídos deste inquérito”, conclui o delegado para justificar o indiciamento por homicídio do sargento.
O Ministério Público se pronunciou pela abertura de ação penal por homicídio contra o policial em 19 de novembro de 2020. A denúncia foi recebida na 1a Vara do Tribunal de Júri de Jaboatão no dia 31 de março de 2021. Desde então a família aguarda a primeira audiência na Justiça.
“Ele sempre será
lembrando pela família”
A morte de Jhones abalou profundamente a sua irmã mais velha, Jéssica, hoje com 20 anos. “Ele realmente se assustou e na hora do susto acontece muita coisa na nossa cabeça, mas não foi porque ele estava envolvido com nada, ele tava com a camisa. Quando correu, (o policial) mirou na cabeça e puxou o gatilho. E todo mundo sabe que o lugar mais fatal que tem é o coração e a cabeça, são os lugares onde a gente não tem chance de sobreviver”.
Jhones tinha concluído o 5o ano do ensino fundamental. Há três meses estava morando com a mãe, mas ia muito a casa do pai, onde vivem Jéssica, uma irmã e outro irmão mais novos. Trabalhava numa oficina ali perto. Era comum ser visto todo sujo de graxa pelos vizinhos e amigos. Foi na calçada em frente a casa do pai que pegou a carona de moto no dia 5 de agosto de 2020. “Jhones sempre foi muito alegre. Brincava e dançava nas festas de ano novo. Ele faria 18 anos no ano passado. Esse ano eu faço 20 e ele faria 19. Fico pensando se essa dor um dia vai passar. Mas sempre vai ter uma falta em nosso coração”.
Emocionada, Jéssica disse à reportagem que se tiver filhos e sobrinhos vai contar as histórias de Jhones para que ele seja sempre lembrando pela família, nunca esquecido.
Hoje, ela diz que vive com medo. Que logo depois da morte do irmão era comum a presença de muitos policiais no entorno de sua casa. Teme especialmente pelo caçula. Com apenas 13 anos, já foi abordado pelos menos duas vezes pela polícia, uma quando andava de skate em frente a casa da família e outra quando estava num uber.
O próprio Jhones, segundo Jéssica, já havia sido vítima de abordagem agressiva da Polícia Militar. Ela diz que oito meses antes do crime, no dia 31 de dezembro de 2019, o irmão foi agredido com um tapa na cara por um policial. A família se sentiu intimidada e não prestou queixa.
No inquérito que indiciou o sargento PM que matou Jhones consta que o jovem já havia sido detido duas vezes e liberado em seguida, uma vez por desacato e outro por suspeita de roubo que não se comprovou.
Jéssica teme que o crime fique impune. “Eu tenho muito medo de que não tenha justiça, porque infelizmente a Justiça é falha e quando se trata de um policial é que fica tudo mais difícil e complicado. Dizem que o réu está solto e não pode ter audiência agora por conta da pandemia. Sempre tem uma desculpa pra não ter audiência no caso de Jhones. Pelo menos que a justiça seja feita, a gente só pede isso”.
A advogada Maria Clara D`Ávila, do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP) acredita que o sistema de Justiça não está preparado para lidar com policiais no banco de réus. “E a gente não tem um Judiciário preparado para isso, por que? Nesses casos, as vítimas se tratam de pessoas negras, pessoas pobres, pessoas moradoras de territórios criminalizados. E os réus são policiais. E eles estão acobertados por toda essa construção narrativa de que seria legítimo o assassinato de pessoas, desde que em situação de operação de segurança pública. Isso faz com que o Judiciário demore muito mais para se movimentar”.