Caminhos

Enfrentamento à letalidade policial passa por fim da “guerra às drogas”, desmilitarização das PMs, mais controle social e transparência

“Eu sempre falava muito com ele: Jhonny, a gente é preto, não corre, não corre. A gente é preto, de favela, a gente sempre vai ter um peso maior nas nossas costas”. O conselho-apelo de Jéssica para lidar com as abordagens policiais revela mais do que uma lembrança amarga do assassinato do irmão. Sugere um projeto de morte a rondar a vida dos jovens negros brasileiros. Afinal, não existe bala perdida quando ela acerta o alvo.

Nos debates sobre as mudanças necessárias na segurança pública para enfrentar a alta letalidade das polícias vem se consolidando a noção de que é preciso implementar medidas práticas imediatas, afinal, não dá para perder tempo quando estamos falando de salvar vidas, mas é preciso ir além e atacar os problemas estruturais por trás dessa violência se quisermos que os resultados sejam permanentes.

Jhonny correu e foi morto com um tiro na nuca porque era um corpo matável, como eram William, Marcone, Deyvison e Marcos Laurindo. Nos inquéritos constam os nomes dos policiais que atiraram contra cada um deles, mas esses crimes estavam gestados antes mesmo dos disparos, numa cadeia de naturalização institucional e social que não pode ser ignorada e envolve muitos atores, como o Ministério Público, poderes Judiciário e Legislativo, governos federal e estaduais e a mídia.

“A polícia mata tanto porque a sociedade brasileira pensou suas instituições de controle de maneira violenta e autoritária, de modo que matar sempre foi uma ação disponível no repertório das forças de segurança”, analisa Felipe Freitas, pesquisador do Núcleo de Justiça Racial da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e membro do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

Para Freitas, o racismo joga um papel central para legitimar a seletividade da atuação do Estado. “O racismo dá a justificativa cognitiva, psíquica, social e política para a violência policial. Ele não cria a violência policial, num certo sentido, mas no Brasil ele é que dá a justificativa moral para essa violência ser o que é do ponto de vista da extensão (quantidade de mortos) como da profundidade, da dimensão estrutural que isso assume no trabalho de várias polícias brasileiras”.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Antiproibicionismo
e fim da guerra às drogas

A chamada “guerra às drogas”, e seu modelo de repressão e punição, tem funcionado como um instrumento do discurso racial de produção de violência. No Brasil, as polícias atuam basicamente na repressão ao comércio de drogas no varejo, reprimindo os grupos mais vulneráveis da cadeia de comercialização. É nessa “guerra” que as polícias vão deixando um rastro de violência e morte nas comunidades.

A Lei 11.343, de 2006, conhecida como lei das drogas, se tornou um marco negativo nessa história. As expectativas iniciais eram que ela reduzisse o número de prisões e violência policial, na medida em que o porte para consumo pessoal deixou de ser punido com detenção, sendo substituído por advertência, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa. A mesma lei ampliou de três para cinco anos de reclusão a pena no caso de porte por tráfico.

Acontece que ficou nas mãos das polícias, do Ministério Público e do Poder Judiciário interpretar o que caracterizaria o porte para consumo e o porte para o tráfico. Na prática, jovens negros flagrados com pequena quantidade de droga nas favelas passaram a ser automaticamente associados à facção que atua no território, relacionando-os ao crime organizado.

Não por acaso, 32% das pessoas encarceradas no país são acusadas de crimes relacionados à lei de drogas. No caso das mulheres, esse percentual sobe para 59%, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen). A maioria de réus primários.

Assim, o encarceramento explodiu nas duas últimas décadas no Brasil. Com mais de 800 mil presos, o país possui a terceira maior população carcerária do mundo. Embora os registros de apreensão de drogas tenham triplicado de 2008 a 2015, segundo estudo do Instituto de Segurança Pública (ISP), do Rio, as quantidades recolhidas foram muito pequenas. O resultado é que tivemos mais prisões, sem que as operações tenham gerado qualquer impacto importante no mercado das drogas.

“Essa é uma guerra de fachada. As grandes apreensões feitas pelas polícias estaduais e federais acontecem em operações sem nenhum tiro, resultado de investigações em colaboração entre a polícia federal e as estaduais. Já as polícias militares fazem operações e não há nada de apreensão de drogas. Por isso essa guerra às drogas é cínica e hipócrita porque quando a polícia quer fazer apreensão, ela faz sem nenhum tipo de vítima”, critica Pablo Nunes, coordenador da Rede de Observatórios da Segurança e coordenador-adjunto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESec).

As palavras de Pablo ilustram tragicamente o que aconteceu na operação do Bope de Pernambuco no dia 9 de novembro de 2020, em Itamaracá, que deixou Deyvison e o seu tio Marcone mortos. Uma ação supostamente contra o tráfico de drogas que não gerou o desbaratamento de qualquer quadrilha. E cujas versões dos policiais militares foram colocadas em xeque no inquérito que apurou a operação e as duas mortes, com as famílias das vítimas contestando a participação de tio e sobrinho no tráfico.

“No fundo no fundo toda essa parafernália e esse aparato bélico contra as pessoas que usam drogas, contra as pessoas que comercializam no varejo as drogas, não arranha sequer o edifício do amplo e bilionário comércio de drogas transnacional. Esse permanece inatacado, protegido e se beneficiando da proibição para ampliar seu lucros”, complementa Felipe Freitas.

Mesmo nos Estados Unidos, maior investidor da “guerra às drogas” no mundo, 15 estados e a capital federal já permitem a produção e o comércio da maconha para uso adulto. É o que também acontece desde 2013 no Uruguai e, desde 2018, no Canadá. A flexibilização da proibição já é uma realidade em dezenas de outros países e abrange desde a descriminalização do uso de todas as drogas, como é o caso de Portugal, à política de tolerância social ao consumo de algumas substâncias, como é o caso da Holanda, da Espanha e do Marrocos.

Felipe defende a descriminalização das drogas com uma regulação forte do Estado sobre esse setor do comércio e, paralelamente, a implantação de uma política de saúde para o usuário e uma política social para enfrentar o problema do uso abusivo, que reconhece como grave pelas implicações sociais. “Enquanto estiver na ilegalidade você mantém as drogas desreguladas e isso é o império dos lucros e é o império da violência, porque aí o que regula esse mercado não são decisões políticas da sociedade são as execuções, as agressões e mutilações”.

 

Samira cita o exemplo da ação da Polícia Civil na comunidade de Jacarezinho, em maio de 2021, que matou 27 pessoas, a mais letal de toda a história do Rio de Janeiro, e lembra o avanço da militarização das guardas municipais pelo Brasil, algumas até com a aquisição de fuzis e armamentos longos para lidar com a proteção ao patrimônio das cidades.

Desmilitarização das polícias
e da sociedade

Uma das propostas mais importantes colocadas no debate da reforma das polícias pela sociedade civil é a desmilitarização. Segundo a Constituição, as Polícias Militares são forças auxiliares e reserva do Exército, cabendo aos Governos Estaduais sua “orientação e planejamento” enquanto polícia ostensiva, sem a prerrogativa de realizar investigações, o que é de responsabilidade das Polícias Civis nos estados. Na prática, o modelo organizacional das PMs é “a imagem e semelhança” do Exército, com uma estrutura hierarquizada bastante rígida e uma mentalidade de combate ao inimigo, mais do que de proteção à população.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) número 51, de autoria do senador Lindenberg Farias (PT), prevê a desvinculação das PMs do Exército; a instituição do ciclo completo para as polícias, o que garantiria que todas elas pudessem exercer o trabalho preventivo, ostensivo e de investigação criminal; e a criação de uma carreira única para cada instituição policial, garantindo uma porta única de entrada, ao contrário do que acontece hoje na Polícia Civil, com delegados e agentes, ou nas PMs, com os praças e os oficiais.

“Esse é um debate bem complexo. Certamente essa excessiva militarização da polícia é um dos fatores que explica a violência institucional que a gente vê no dia a dia das operações policiais. Por outro lado, a gente está falando de uma militarização que é quase uma militarização da vida. Ela não é mais algo exclusivo da instituição Polícia Militar”, analisa Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Foto: Roberto Parizotti/Fotos Publicas

As grandes operações policiais com inúmeras vítimas fatais são um reflexo desse modelo militarizado de atuar das forças de segurança no Brasil. O Rio de Janeiro é o maior exemplo desse modus operandi, que já se espalhou por vários outros estados do país, com incursões militares com uso de carros blindados, helicópteros e armas de grosso calibre. Operações que transformam as ruas das comunidades em verdadeiros campos de batalha e lembram cenas das guerras convencionais de ocupação, com agressões injustificadas, revistas arbitrárias e invasões de domicílio sem mandado.

“A gente tem que mudar o modelo de polícia por operações, temos que extinguir a normalização dessa expressão no âmbito da segurança pública. É corriqueiro, sempre que a gente tem chacinas, execuções praticadas pela polícia, que isso venha por dentro das tais operações policiais”, critica Felipe Freitas, para quem as operações devem ser uma prática excepcional, “que a gente consiga se lembrar num ciclo de dez anos de três ou quatro grandes operações, dizer porque aconteceram, mas hoje nós temos cinco, seis, dez operações por semana”.

Um modelo que se reflete também nas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), quando é concedido ao Exército o poder de polícia. O Rio, de novo, é a referência, com a intervenção militar decretada em maio de 2018, durante o governo Temer. Na ocasião, militares do Exército dispararam mais de 80 tiros contra um carro que levava uma família para um chá de bebê.

Foto: Reprodução TV

O músico Evaldo Rosa dos Santos, 46, foi alvejado e morto. O catador Luciano tentou ajudar a família, foi baleado e morreu 11 dias depois no hospital. A alegação dos militares era a de que buscavam os autores de um roubo. Dois anos e meio depois, oito militares foram condenados pelo crime com penas entre 31 e 23 anos de prisão e a expulsão das Forças Armadas. Eles seguem em liberdade aguardando o julgamento do recurso.

A busca por assaltantes também foi a justificativa para a morte de Jhonny, em 5 de agosto de 2020, na comunidade de Rio das Velhas, em Prazeres, Jaboatão. Assim como o músico Evaldo, ele não teve qualquer chance de defesa. Tudo aconteceu na rua, na vista de muitas pessoas. Nos dois casos, as versões dos policiais envolvidos foram contestadas durante as investigações da Polícia Civil e também pelo Ministério Público. A família de Jhonny segue aguardando o julgamento dos réus.

Desmilitarização das polícias
e da sociedade

Uma das propostas mais importantes colocadas no debate da reforma das polícias pela sociedade civil é a desmilitarização. Segundo a Constituição, as Polícias Militares são forças auxiliares e reserva do Exército, cabendo aos Governos Estaduais sua “orientação e planejamento” enquanto polícia ostensiva, sem a prerrogativa de realizar investigações, o que é de responsabilidade das Polícias Civis nos estados. Na prática, o modelo organizacional das PMs é “a imagem e semelhança” do Exército, com uma estrutura hierarquizada bastante rígida e uma mentalidade de combate ao inimigo, mais do que de proteção à população.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) número 51, de autoria do senador Lindenberg Farias (PT), prevê a desvinculação das PMs do Exército; a instituição do ciclo completo para as polícias, o que garantiria que todas elas pudessem exercer o trabalho preventivo, ostensivo e de investigação criminal; e a criação de uma carreira única para cada instituição policial, garantindo uma porta única de entrada, ao contrário do que acontece hoje na Polícia Civil, com delegados e agentes, ou nas PMs, com os praças e os oficiais.

“Esse é um debate bem complexo. Certamente essa excessiva militarização da polícia é um dos fatores que explica a violência institucional que a gente vê no dia a dia das operações policiais. Por outro lado, a gente está falando de uma militarização que é quase uma militarização da vida. Ela não é mais algo exclusivo da instituição Polícia Militar”, analisa Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Foto: Roberto Parizotti/Fotos Publicas

As grandes operações policiais com inúmeras vítimas fatais são um reflexo desse modelo militarizado de atuar das forças de segurança no Brasil. O Rio de Janeiro é o maior exemplo desse modus operandi, que já se espalhou por vários outros estados do país, com incursões militares com uso de carros blindados, helicópteros e armas de grosso calibre. Operações que transformam as ruas das comunidades em verdadeiros campos de batalha e lembram cenas das guerras convencionais de ocupação, com agressões injustificadas, revistas arbitrárias e invasões de domicílio sem mandado.

“A gente tem que mudar o modelo de polícia por operações, temos que extinguir a normalização dessa expressão no âmbito da segurança pública. É corriqueiro, sempre que a gente tem chacinas, execuções praticadas pela polícia, que isso venha por dentro das tais operações policiais”, critica Felipe Freitas, para quem as operações devem ser uma prática excepcional, “que a gente consiga se lembrar num ciclo de dez anos de três ou quatro grandes operações, dizer porque aconteceram, mas hoje nós temos cinco, seis, dez operações por semana”.

Um modelo que se reflete também nas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), quando é concedido ao Exército o poder de polícia. O Rio, de novo, é a referência, com a intervenção militar decretada em maio de 2018, durante o governo Temer. Na ocasião, militares do Exército dispararam mais de 80 tiros contra um carro que levava uma família para um chá de bebê.

Foto: Reprodução TV

O músico Evaldo Rosa dos Santos, 46, foi alvejado e morto. O catador Luciano tentou ajudar a família, foi baleado e morreu 11 dias depois no hospital. A alegação dos militares era a de que buscavam os autores de um roubo. Dois anos e meio depois, oito militares foram condenados pelo crime com penas entre 31 e 23 anos de prisão e a expulsão das Forças Armadas. Eles seguem em liberdade aguardando o julgamento do recurso.

A busca por assaltantes também foi a justificativa para a morte de Jhonny, em 5 de agosto de 2020, na comunidade de Rio das Velhas, em Prazeres, Jaboatão. Assim como o músico Evaldo, ele não teve qualquer chance de defesa. Tudo aconteceu na rua, na vista de muitas pessoas. Nos dois casos, as versões dos policiais envolvidos foram contestadas durante as investigações da Polícia Civil e também pelo Ministério Público. A família de Jhonny segue aguardando o julgamento dos réus.

Samira cita o exemplo da ação da Polícia Civil na comunidade de Jacarezinho, em maio de 2021, que matou 27 pessoas, a mais letal de toda a história do Rio de Janeiro, e lembra o avanço da militarização das guardas municipais pelo Brasil, algumas até com a aquisição de fuzis e armamentos longos para lidar com a proteção ao patrimônio das cidades.

Cobrança por nova postura
do MP e do Judiciário

A impunidade é justamente outro ponto central da violência no Brasil. Levantamentos indicam que apenas 5 a 8% dos homicídios são esclarecidos no país, enquanto na maior parte dos países desenvolvidos a polícia esclarece de 70 a 90% das mortes violentas. Os números variam bastante entre os estados brasileiros, mas a impunidade prevalece. Sem esclarecimento das mortes violentas intencionais, fica comprometida a efetividade das intervenções para reduzi-las, assim como medidas eficazes para preveni-las.

Essa situação é ainda mais grave quando quem puxou o gatilho foi um agente de segurança. Pesquisadores veem leniência do Ministério Público do Ministério Público e do Judiciário quando se trata de julgar e punir abusos e violência policiais. Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que os Ministérios Públicos do Rio de Janeiro e de São Paulo pediram à Justiça o arquivamento de nove em cada dez casos de mortes provocadas por policiais nas capitais fluminense e paulista em 2016.

Naquele ano, os MPs deliberaram sobre 316 casos de mortes por agentes de segurança nas cidades de São Paulo (139) e do Rio (177). Na capital paulista, houve apenas dez denúncias à Justiça contra policiais e, no Rio, 20. Os demais casos foram arquivados. Especialistas em segurança pública dizem que esse quadro é resultado de omissão das promotorias e da falta de investigações policiais de qualidade. Para eles, a impunidade de agentes envolvidos em casos do tipo gera um ciclo vicioso com mais mortes cometidas por agentes.

“A punição é essencial. Se você mata e não vai dar em nada, você nunca vai ser responsabilizado por aquilo, a mensagem que fica é a da justiça com as próprias mãos. Tem policial que não está disposto a apertar o gatilho. A maior parte deles não está. Mas 1% está disposto a fazê-lo e isso já é o suficiente pra gente ter taxas elevadíssimas de letalidade policial” avalia Samira.

Para ela, o sistema de justiça precisa dar respostas, mostrar que se o policial agir de forma ilegal vai perder o cargo, vai perder a aposentadoria, vai ser preso, para que ele pense duas vezes antes de matar. “Mas isso é algo que quase não acontece no Brasil, mesmo entre os que são sentenciados por homicídio, muitos conseguem manter o cargo e a aposentadoria”, informa.

“Tudo isso só acontece porque o Ministério Público é omisso em relação ao controle externo da atividade policial. Quando 9 de cada 10 casos são prontamente arquivados, já mostra que o discurso oficial desses policiais, ainda que muitas vezes não batam com a perícia, é assimilado pelo sistema de justiça como verdade. O policial tem fé pública e isso é compreendido como verdade absoluta. A polícia só continua produzindo tantas mortes porque o sistema de justiça, tanto o MP quanto o Judiciário, vai lá e ratifica”, critica Samira.

Felipe Freitas defende mudanças no direito processual penal para interromper uma série de ilegalidades praticadas durante o inquérito, ainda no âmbito das investigações policiais, e que muitas vezes são desconsideradas, na fase propriamente judicial do processo. “Precisamos acabar com as condenações baseadas exclusivamente no depoimento policial. Nós precisamos abandonar por completo essa ideia do número excessivo de buscas pessoais, de revistas, de invasão de domicílio sem mandado judicial, é o famoso pé na porta da casa das pessoas. Temos que realizar reformas tanto legislativas quanto de interpretação das leis”, afirma.

Nos Estados Unidos, a morte de George Floyd, em 2020, pressionou o debate sobre a reforma das polícias, com o impulsionamento do movimento Black Lives Matter. Inclusive com propostas de desfinanciamento das polícias. Propostas do tipo já foram implementadas anteriormente naquele país. Nos anos 1990, a Polícia de Los Angeles era uma das que mais matava e, para frear essa violência, foi criado um programa no qual, ficando comprovado o uso excessivo e desnecessário de força, além da punição ao policial, as famílias eram indenizadas com recursos saídos do orçamento da polícia.

Essa é também a opinião de Pablo Nunes, : “O que a gente sabe, e tem vários exemplos que mostram isso, é que o MP nunca abraçou de maneira completa essa sua tarefa constitucional de garantir o controle da ação policial. E quando a gente não tem o MP que acompanha, controla, investiga, denuncia e, de certa forma, responsabiliza autores de violações, temos um cenário de impunidade que alimenta esse processo de violência”.

“Se cada uma das mortes que são comprovadamente ilegais resultassem em indenizações para as famílias das vítimas e essas indenizações saíssem dos orçamentos das polícias, será que os comandos dessas polícias iam ficar um pouco mais preocupados em controlá-las? Porque quando pega no bolso a coisa muda de figura. Só que isso não avança no Brasil”, questiona Samira.

Exemplo disso é a luta de 15 anos das Mães de Maio, mulheres que tiveram seus filhos assassinados por agentes do Estado nas periferias da Grande São Paulo, em 2006, durante ataques promovidos por policiais e integrantes de uma facção criminosa, que resultaram em mais de 500 mortos. Só em 2018 o Ministério Público moveu uma ação judicial na qual consta como reivindicação a admissão de que houve ação criminosa articulada e organizada. A ação pede tratamento psicológico para as mães e familiares das vítimas, indenizações individuais e coletivas por dano social, e disponibilização da versão das mães em vídeos e textos em sites do Governo do Estado.

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Bruno acredita que a política de aumentar continuamente o efetivo das polícias estaduais pode agravar e não reduzir a violência. “Melhor você ter uma polícia menor e controlada do que uma polícia grande descontrolada. Se você não tem condições de exercer o controle sobre essas polícias, eles vão virar parte do problema, porque eles vão usar a sua carteira, o seu distintivo, para ganhar dinheiro no crime. Governar com capacidade de exercer o controle sobre a polícia, saber o que está acontecendo, é fundamental para a estabilidade política. Essa retomada da compreensão do papel que os políticos e os governos têm de exercer esse controle é fundamental”

Controle político e institucional

Os pesquisadores da área de segurança dizem que a grande pergunta a ser respondida é: quem controla as polícias? Uma questão que fica no ar a partir, inclusive, do descumprimento da ADPF 635, do Supremo Tribunal Federal, que impôs limites às operações das polícias nas comunidades periféricas do Rio de Janeiro e tem sido descumprida, como aconteceu no caso da mega operação da Polícia Civil em Jacarezinho. Se nem o STF tem autoridade para colocar os policiais na linha, quem tem?

Autor do best-seller A República das Milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, livro reportagem vencedor do Prêmio Jabuti 2022, o jornalista e cientista político Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, considera que o controle das polícias é uma questão política que precisa ser encarada como prioridade no país. Falando sobre os desafios postos para os governadores que serão eleitos em 2022 e tomam posse em 2023, ele chama atenção para o aumento constante dos homicídios praticados por policiais.

“O desafio é controlar as polícias sob um governo forte, com legitimidade, que consiga retomar o controle das polícias. Se a gente for pensar nos últimos 10 anos, o Brasil passou de 2 mil homicídios praticados pela polícia, que se concentravam basicamente no Rio e em São Paulo, para mais de 6 mil homicídios por ano nos últimos três anos. São Paulo já foi o estado mais violento do Brasil em termos de violência policial, hoje, segundo os dados do Monitor da Violência que a gente faz aqui na USP, junto com o G1 (portal da Rede Globo), está entre a 14ª e a 15ª posição no ranking. Não que a polícia de São Paulo tenha se tornado menos violenta, ela segue violenta. Só que existem 13, 14 polícias no Brasil que se tornaram mais violentas”, explica o jornalista.

Em República das Milícias, Bruno Paes Manso narra o processo de gestão violenta do território pelas milícias, que tomou corpo nos últimos vinte anos na zona oeste do Rio. O livro se constrói a partir de depoimentos de protagonistas desse processo, explicitando as ligações entre policiais, o tráfico, o jogo do bicho e o poder público.

O retrato do avanço das milícias no Rio dá a dimensão do quanto a falta de controle e punição para as ações truculentas das polícias pode servir de porta de entrada para a expansão de novas formas de organização criminosa. “O passo seguinte – e isso aconteceu no Rio de Janeiro -, é que elas passem a usar essa liberdade, essa carta branca para matar, para ganhar dinheiro no crime, pois é um poder muito grande que os policiais têm para ameaçar, para vencer os rivais, para impor o medo e, se matar, não ser punido. A quantidade elevada de homicídios é a semente das milícias e é um sintoma do descontrole das polícias”.

Controle político e institucional

Os pesquisadores da área de segurança dizem que a grande pergunta a ser respondida é: quem controla as polícias? Uma questão que fica no ar a partir, inclusive, do descumprimento da ADPF 635, do Supremo Tribunal Federal, que impôs limites às operações das polícias nas comunidades periféricas do Rio de Janeiro e tem sido descumprida, como aconteceu no caso da mega operação da Polícia Civil em Jacarezinho. Se nem o STF tem autoridade para colocar os policiais na linha, quem tem?

Autor do best-seller A República das Milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, livro reportagem vencedor do Prêmio Jabuti 2022, o jornalista e cientista político Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, considera que o controle das polícias é uma questão política que precisa ser encarada como prioridade no país. Falando sobre os desafios postos para os governadores que serão eleitos em 2022 e tomam posse em 2023, ele chama atenção para o aumento constante dos homicídios praticados por policiais.

“O desafio é controlar as polícias sob um governo forte, com legitimidade, que consiga retomar o controle das polícias. Se a gente for pensar nos últimos 10 anos, o Brasil passou de 2 mil homicídios praticados pela polícia, que se concentravam basicamente no Rio e em São Paulo, para mais de 6 mil homicídios por ano nos últimos três anos. São Paulo já foi o estado mais violento do Brasil em termos de violência policial, hoje, segundo os dados do Monitor da Violência que a gente faz aqui na USP, junto com o G1 (portal da Rede Globo), está entre a 14ª e a 15ª posição no ranking. Não que a polícia de São Paulo tenha se tornado menos violenta, ela segue violenta. Só que existem 13, 14 polícias no Brasil que se tornaram mais violentas”, explica o jornalista.

Em República das Milícias, Bruno Paes Manso narra o processo de gestão violenta do território pelas milícias, que tomou corpo nos últimos vinte anos na zona oeste do Rio. O livro se constrói a partir de depoimentos de protagonistas desse processo, explicitando as ligações entre policiais, o tráfico, o jogo do bicho e o poder público.

O retrato do avanço das milícias no Rio dá a dimensão do quanto a falta de controle e punição para as ações truculentas das polícias pode servir de porta de entrada para a expansão de novas formas de organização criminosa. “O passo seguinte – e isso aconteceu no Rio de Janeiro -, é que elas passem a usar essa liberdade, essa carta branca para matar, para ganhar dinheiro no crime, pois é um poder muito grande que os policiais têm para ameaçar, para vencer os rivais, para impor o medo e, se matar, não ser punido. A quantidade elevada de homicídios é a semente das milícias e é um sintoma do descontrole das polícias”.

Bruno acredita que a política de aumentar continuamente o efetivo das polícias estaduais pode agravar e não reduzir a violência. “Melhor você ter uma polícia menor e controlada do que uma polícia grande descontrolada. Se você não tem condições de exercer o controle sobre essas polícias, eles vão virar parte do problema, porque eles vão usar a sua carteira, o seu distintivo, para ganhar dinheiro no crime. Governar com capacidade de exercer o controle sobre a polícia, saber o que está acontecendo, é fundamental para a estabilidade política. Essa retomada da compreensão do papel que os políticos e os governos têm de exercer esse controle é fundamental”

As câmeras corporais
e as imagens da violência

Uma das experiências mais recentes que visa controlar a violência policial na ponta são as câmeras corporais. Acopladas aos uniformes dos policiais militares, elas foram implementadas pelo governo de São Paulo para reduzir os casos de abusos e letalidade policial. Significaram a redução de 36% no número de pessoas mortas por supostos confrontos com agentes de segurança em 2021. Nas 18 unidades que receberam as câmeras, entre capital, litoral e interior do estado, a queda chegou a 83% nos últimos sete meses do ano passado, em comparação com o mesmo período de 2020. Além de São Paulo, os estados de Santa Catarina, Rondônia e Rio de Janeiro começaram a implementar progressivamente o programa em 2021.

Em Pernambuco, havia a previsão de que as câmeras acopladas ao fardamento dos policiais militares seriam incorporadas em dezembro, mas o processo foi adiado para 2022. Inicialmente, a previsão é de que os policiais do 17o Batalhão, com sede em Paulista, Região Metropolitana do Recife, recebam as primeiras câmeras corporais. Além de imagens, as câmeras também gravam sons e tudo é armazenado em tempo real na nuvem. A Secretaria de Defesa Social deve definir uma central para receber a transmissão em tempo real, possivelmente o Centro Integrado de Operações da Defesa Social (Ciods), no centro do Recife.

As câmeras teriam sido importantes para as investigações dos quatro casos relatados neste especial, como o de Marcos Laurindo, morto dentro de sua própria casa, na presença do pai e da mãe, no dia 17 de maio de 2013, na comunidade de Bola na Rede, Guabiraba, Zona Norte do Recife. Os policiais alegaram que a vítima tentou assaltar a viatura e que perseguiram Marcos Laurindo, que estaria armado. As investigações não sustentaram a versão dos dois policiais envolvidos na morte.

As câmeras corporais também teriam sido fundamentais para esclarecer as circunstâncias e os detalhes da morte de Viktor Kawan, um adolescente de 17 anos morto a tiros por policiais do 11o Batalhão, em dezembro de 2021, no bairro de Sítio dos Pintos, zona norte do Recife, e colocar à prova a versão, negada pela família e testemunhas, de que houve troca de tiros. A ação dos policiais foi filmada por câmeras de segurança das casas vizinhas, que registraram o som de 11 tiros e fundamentaram o afastamento imediato dos dois policiais das operações de rua.

O uso das câmeras foi defendido pela Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Pernambuco (OAB-PE), no mês de julho, junto à SDS. Proposta pela Comissão de Direitos Humanos da entidade, a medida foi sugerida logo após o ataque de PMs à manifestação pacífica contra o governo Bolsonaro, realizada em 29 de maio de 2021, no centro do Recife, quando a ação truculenta da polícia cegou duas pessoas que passavam pelo local e sequer participavam do protesto.

Foto: Hugo Muniz

Apesar de defender o uso de câmeras corporais, o pesquisador Felipe de Freitas alerta que a medida não pode ser vista como uma panaceia que vai resolver o problema da violência policial ou da impunidade. Para ele, “ver a violência, visualizar episódios de violência, não tem sido suficiente para que o Judiciário interrompa essas práticas ou responsabilize essas práticas”.

Freitas cita o caso do jovem negro de 18 anos que furou um bloqueio da polícia, foi detido, algemado a uma motocicleta policial e arrastado por vários metros em novembro de 2021, em São Paulo, e que a juíza, num primeiro momento, não enxergou tortura e maus tratos no que viu. Lembra também o caso do imigrante congolês Moise Kabahambe, de 24 anos, que teve o espancamento até a morte gravado e isso não acelerou o processo de ação da polícia nas investigações do caso. O que só aconteceu dias depois quando o assassinato foi divulgado nas redes e repercutiu dentro e fora do Brasil.

“Ver a violência contra corpos negros numa sociedade racista não é suficiente para interromper essas práticas de violência. Então não há porque acreditar que o uso de câmeras corporais vá ser essa panaceia, ainda que ela me pareça muito importante. Porque a gente tem que ampliar o número de obstáculos à prática da violência policial, mas a gente também tem que se proteger de uma leitura ingênua de que as câmeras são a saída definitiva”.

Transparência de dados
e políticas públicas

Um aspecto fundamental para atuar no enfrentamento à violência, incluindo aquela praticada por agentes do Estado, no curto, médio e longo prazos é o da transparência de dados na área de segurança pública. Os dados sobre as circunstâncias dos crimes, os territórios onde eles aconteceram, os perfis das vítimas e dos criminosos são a matéria-prima do diagnóstico necessário para a formulação de políticas públicas direcionadas a enfrentar as diferentes formas de violências.

“Uma política de redução de homicídios, por exemplo, precisa considerar que o feminicídio tem características diferentes do latrocínio, que tem características diferentes de um homicídio que decorre de briga de gangue, de facção. São três políticas bastante diferentes de redução da violência letal. Uma com foco na violência doméstica, outra no roubo seguido de morte e outra em grupos criminosos organizados. São três cenários distintos. A gente não pensa em política pública de segurança se não tivermos um bom retrato do que acontece”, explica Samira.

Um dos instrumentos mais importantes para o trabalho de pesquisadores como Samira é a Lei de Acesso à Informação, que completou 10 anos em 2021. Ela regulamentou o acesso às informações públicas previsto na Constituição Federal, criando mecanismos que possibilitam a qualquer pessoa, física ou jurídica, requisitar informações públicas dos órgãos e entidades municipais, estaduais e federais. É por meio da LAI que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública organiza e divulga o Anuário sobre a violência no Brasil, já em sua 15a edição, solicitando informações diretamente às Secretarias de Segurança Pública dos 26 estados e do Distrito Federal, podendo até recorrer à Justiça no caso de omissão por parte dos órgãos públicos.

Foi graças à LAI que o Fórum pode fazer o levantamento por estado da letalidade policial, informações que não eram disponibilizadas pelas secretarias estaduais da área. “O debate avançou muito. O debate sobre segurança pública há dez anos era feito exclusivamente com os dados da informação da Saúde, a gente não conseguia fazer esse tipo de reflexão, olhar pro estado, pra letalidade, e ter um quadro nacional, saber qual é a polícia que mais mata, quanto ela matou no ano passado. Por outro lado, isso corre um sério risco. Especialmente porque 2022 é um ano eleitoral e a gente sabe que a disputa é pesada e a gente espera que a nossa democracia dê conta de todos esses ataques”, diz Samira.

Os riscos aos quais a pesquisadora se refere vêm do governo Bolsonaro, que suspendeu os prazos de respostas dos pedidos feitos via LAI e impôs sigilo de 100 anos em casos como o processo administrativo movido contra Eduardo Pazuello por participação em ato político. A ação do governo federal tem incentivado alguns governos estaduais a retrocederem em suas políticas de transparência, como é o caso de Goiás, em que o governador Ronaldo Caiado (DEM) determinou o sigilo de dados sobre os números de policiais mortos e de mortes praticadas por policiais no estado.

Foto: Veetmano/JCMazella

Agenda de morte: excludente de ilicitude e liberalização de armas

Enquanto pesquisadores, entidades da sociedade civil e movimentos sociais se mobilizam para reduzir a violência do Estado, com propostas por mais controle da atividade policial e o fim da impunidade, o governo Bolsonaro caminha em sentido contrário. No início de fevereiro de 2022, o governo encaminhou ao Congresso Nacional a lista de 45 projetos prioritários do Executivo em tramitação no Parlamento. Na área de segurança, além de projetos de aumento de pena para uma série de crimes e apoio ao PL 6438, que amplia a liberação de armas de fogo e munição para caçadores, atiradores e colecionadores; a Casa Civil informou que elabora uma proposta sobre a “retaguarda jurídica dos policiais” no sentido de garantir “maior amparo jurídico” às polícias.

Desde o começo de sua gestão, Bolsonaro tem investido na aprovação do projeto de lei do excludente de ilicitude, dispositivo que eximiria agentes de segurança de punição em caso de mortes praticadas em condições de “medo, surpresa ou violenta emoção”. O Código Penal brasileiro, em seu artigo 23, prevê a exclusão de ilicitude em três casos: estrito cumprimento de dever legal, em legítima defesa e em estado de necessidade. Ainda assim, segundo a Constituição Federal, quem comete excessos pode ser punido.

A ampliação do excludente de ilicitude fez parte do pacote anticrime apresentado por Sérgio Moro, então ministro da Justiça, ao Congresso Nacional, em 2019, mas foi rejeitada na votação final do projeto. A proposta de Moro pode tornar inócuo o parágrafo único ao permitir que o juiz reduza pela metade a pena do acusado ou até mesmo deixe de aplicá-la caso “o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

As prioridades de ação de um governo dão pistas dos valores que regem esse governo. Isso fica muito evidente no Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social 2021-2030 lançado pela gestão Bolsonaro, uma atualização do Plano Nacional elaborado pelo governo Temer em 2018. O documento reduziu de 15 para 5 os objetivos prioritários com ações estratégicas específicas: mortes violentas, proteção a profissionais de segurança pública, roubo e furto de veículos, sistema prisional e as ações de prevenção de desastres e acidentes.

Não há menções à letalidade policial, que deixa de ser um indicador. Passam a contar apenas informações sobre a quantidade de profissionais de segurança mortos em decorrência de sua atividade, a taxa de vitimização de profissionais de segurança pública e a taxa de suicídios desses profissionais.

“Saberemos de forma precisa quantos policiais morrem no Brasil. Em compensação, o número de pessoas mortas pela polícia será uma incógnita. É quase um excludente de ilicitude estatístico”, criticou Ricardo Moura, coordenador do Observatório da Segurança do Ceará em texto publicado no Jornal O Povo. Ricardo explica que o item “Proteção dos profissionais da segurança pública”, por exemplo, vem logo após “mortes violentas” em um claro aceno a uma das bases de apoio político mais fiéis ao presidente.

“Reprimir o crime organizado, combater a expansão das milícias, rever a política de drogas, aperfeiçoar o controle e o rastreamento de armas de fogo, munições e explosivos, articular ações no âmbito da gestão municipal da segurança… Nenhum desses temas aparece como um grupo prioritário no documento. Quando mencionados, surgem de forma secundária como um vestígio da redação “fragilizada” do plano anterior”, informa Ricardo Moura. Embora previsto em lei, o feminicídio não é mencionado. Em seu lugar, é empregada a expressão “mortes violentas de mulheres”.

“É assustador como em tudo o governo concorre para a produção da violência, para o aumento da exposição das comunidades à violência policial e não policial e para a diminuição do papel e da atuação do Estado na garantia de direitos da população. É chocante, como o governo Bolsonaro tem foco, tem objetividade na sua cruzada de desconstrução do pacto social, celebrado em 1988 com a promulgação da Constituição Federal. Mais do que desconstruir o pacto de 1988, lançar o Brasil de volta a problemas já superados, séculos atrás, mas fundamentalmente um projeto de desfazimento e de fragilização das relações sociais e de produção da violência”, analisa Felipe Freitas.

Um dos casos mais emblemáticos dessa postura anti civilizatória do governo Bolsonaro é a política de flexibilização do acesso a armas de fogo no país. Desde 2018, ano da eleição de Bolsonaro, até o final de 2021, quadruplicaram os novos registros anuais de arma na Polícia Federal, de 51.027 em 2018 para 204.314 no ano passado. Os registros de porte cresceram 57% no governo Bolsonaro: de 8.680 antes da posse para 13.667 em 2021.

Nos três anos da gestão Bolsonaro mais de 30 decretos e atos normativos a favor das armas foram publicados, segundo dados do Atlas da Violência de 2021, produzido pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). As medidas flexibilizam a posse, ampliam limites de compras, diminuem os impostos e possibilitam a produção de munição caseira. O Atlas afirma que o crescimento do segmento “pode agravar o cenário de violência doméstica”. Diz que a alta pode “disponibilizar instrumentos ainda mais letais a agressores”.

Alguns dos decretos e atos do presidente foram suspensos pelo Judiciário, mas o julgamento das ações pelo Supremo Tribunal Federal está paralisado a pedido do ministro Nunes Marques, indicado para a corte por Bolsonaro. O ministro adiou a análise de 12 das 14 ações.

Uma dessas ações é uma resolução que zera o imposto da importação de pistolas e revólveres. Mesmo com a medida suspensa, a importação desses tipos de armas tem crescido, tendo triplicado desde 2018, segundo a plataforma do governo ComexStat.

Para Felipe Freitas, a política de armas do governo Bolsonaro é inconstitucional porque ela viola o que foi pactuado socialmente no Estatuto do Desarmamento. “O governo Bolsonaro já revogou o espírito, digamos assim, do que o parlamento decidiu em relação à política de produção, comércio e circulação de armas, na medida em que, por meio de decretos, ou seja, uma via não legislativa, ampliou as várias formas de acesso à arma legal no Brasil e com isso alimentou e está alimentando o mercado ilegal de armas porque na prática esse mercado é todo alimentado por armas que entram legalmente ou pela via da corrupção”.

Ele argumenta que as pesquisas realizadas sobre homicídio no Brasil mostram que o controle da circulação de armas é um dos poucos elementos que têm relação direta com a diminuição do número de mortes violentas.

Discurso do ódio
e politização dos quartéis

Outro ponto que preocupa Freitas e os pesquisadores de segurança pública no país, quando se trata do governo Bolsonaro, é o discurso de ódio promovido por uma autoridade pública do porte do presidente e que funciona para muita gente como uma espécie de convocação nacional. Por mais frágil ou desprestigiado que esteja esse presidente, segundo Freitas, sinalizando que esse não é exatamente o caso de Bolsonaro, que ainda detém uma base de apoio popular relativamente expressiva, o seu discurso tem um peso político importante.

“O discurso de Bolsonaro é um convite ao ódio, à violência, à ação direta. Bolsonaro logrou reorganizar a extrema direita para a ação direta, ou seja, ele desmontou o Estado também nesse sentido. Ele não convida a extrema-direita a participar da vida democrática, a participar da esfera pública, ele convida a extrema-direita a fazer ação direta”.

O discurso de ódio do presidente e de outras autoridades federais e estaduais constroem o contexto que explicaria porque, em plena pandemia, enquanto os homicídios em geral tiveram uma queda, as mortes praticadas por policiais cresceram no Brasil. “Você tem um presidente da República que está vocalizando o tempo todo a ampliação desse instrumental. Especialmente quando a gente está falando de Polícia Militar, e a Polícia Militar no Brasil produz a maior parte dessas mortes em intervenções, elas são muito sensíveis ao comando. A ideia de comando e controle é algo que é muito caro na hierarquia militar”, argumenta Samira.

A pesquisadora enumera as situações que envolvem a letalidade policial. Existe o caso em que o policial usa da violência de forma legítima pra proteger a si mesmo, a um terceiro, um colega ou um civil. Ele vai fazer uso da força porque não tem outra forma de lidar com a situação, então isso está previsto na legislação, ele não vai ser processado por isso. Tem o caso em que o policial faz o uso excessivo da força de forma ilegítima, mas por erro. Ele errou. Por falta de treinamento, porque estava muito nervoso. É um erro mas que resultou na morte de um cidadão. E você tem os casos em que o policial vai fazer uso da força de forma explícita, flagrantemente ilegal, porque ele acha que ele pode. O discurso do ódio fala diretamente para esses policiais.

Pablo Nunes vê o cenário político desde 2018 reforçando uma posição de violência institucional. “A gente tem a política pendendo para uma polícia sem amarras, sem controle. Muitos estados não possuem sequer um plano de segurança pública e isso é um outro fator para essa violência policial. Quando os governantes não só não emitem um sinal claro de que violência policial não será tolerada, mas fazem o contrário e fomentam a violência policial”.

Foi o que aconteceu em outubro de 2021 quando o governador de Minas, Romeu Zema (Novo), parabenizou pelas redes sociais a operação conjunta das polícias Militar e Rodoviária Federal que terminou com a morte de 25 pessoas. Segundo as polícias, as vítimas eram integrantes de uma quadrilha que tramava o assalto a agência bancárias do município de Varginha, na região Sul daquele estado.

“Os governadores têm um papel muito importante ao determinar as orientações para as tropas e os comandos. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, a letalidade policial foi tirada dos indicadores que devem ser reduzidos para garantir bonificações e melhor colocação de cargos e salários. Então eles têm um papel político importante e que hoje acaba sendo instável por conta das mudanças drásticas e abruptas no contexto político. 2018 é central para entendermos isso”, argumenta Pablo.

A politização das polícias militares é um elemento considerado muito grave por Felipe Freitas. O histórico recente de greves nas Polícias Militares impressiona. Primeiro, a greve de 1997, em Minas, que se estendeu por mais 11 estados, depois as greves de 1998 e 2001, em Pernambuco e outros estados, seguidas por motins, em alguns casos locais e em outros nacionais, nos anos de 2004, 2007, 2008, 2012, 2017 e, por fim, em 2020, no Ceará, quando inclusive obteve o apoio de Sérgio Moro, então ministro da Justiça do governo Bolsonaro.

“Sempre houve por dentro dessas greves policiais uma forte disseminação de discursos de extrema-direita, de discursos protofascistas que circularam nas polícias nesses diferentes momentos. Sempre circularam e apareceram socialmente nesses momentos. Mas Bolsonaro eleva a temperatura desse debate e dá instrumentos para que isso aconteça”, argumenta Freitas.

“Considerando o processo eleitoral, Bolsonaro tende a provocar radicalizações. Independentemente de qual for o resultado da eleição, seja ele o que eu espero, com Bolsonaro perdendo a eleição e a gente voltando a ter um governo democrático no país, essa luta está longe de ser vencida porque essas forças sociais seguirão agindo socialmente com muita força, agindo politicamente com muita força. E produzindo resultados dramáticos e letais como os que a gente está vendo agora”.

Foto: Tânia Rego/Agência Brasil